Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Praticar uma sólida agenda
cultural ainda é utopia

DALILA TELES VERAS - 16/09/2008


No texto que escrevi para o primeiro volume de Nosso Século XXI, falei da necessidade do cultivo da utopia neste século que, à época, 2001, apenas se iniciava. Referia-me à utopia como dimensão permanente da condição humana, condição hoje cada vez mais precária, assim como a questão educativo-cultural. São temas que necessitam, mais do que nunca, de reflexão e muita discussão, já que continuam sendo considerados irrelevantes no conjunto de propostas de gestão pública e, desgraçadamente, também pela comunidade como um todo.


Diz a professora Olgária Matos que num mundo utilitário, pragmático e de resultados, que não visa a temporalidade longa que é própria das humanidades, de uma maneira geral a filosofia fica sob ataque. Eu complementaria dizendo que também a cultura e, em especial, a utopia, diante da padronização imposta pela globalização que tenta passar por cima de toda e qualquer diferença regional, deixando de priorizar tudo aquilo que não esteja ligado à economia e ao mercado financeiro.


Pois bem, se regionalidade com toda sua complexidade era o tema central e o grande questionamento do volume 1 de Nosso Século XXI, assinado por 29 de nossas cabeças pensantes, hoje, decorridos sete anos, o impasse permanece: a idéia de regionalidade não está posta nos discursos da maioria de nossas lideranças políticas, muito menos praticada. A idéia paroquial e passadista de que pensar regionalmente pode levar a ignorar a sua própria cidade ainda ocupa as mentes dos que comandam as administrações públicas locais. Entre os gregos, bárbaros eram os que não falavam a sua língua. Entre nós, deste pobre subúrbio chamado Grande ABC, que na sua forma substantivada também pode significar “alfabeto”, todo aquele que está fora da restrita esfera de poder municipal é considerado “estrangeiro”. Como, então, integrar cidades que falam sete diferentes “línguas”e se isolam dentro das respectivas fronteiras?


Regionalidade ocupa menos ainda a cabeça da maioria dos cidadãos comuns, para os quais essa questão não passa de mera abstração, apesar de, na realidade diária, a integração se fazer presente, considerando-se que um mesmo cidadão, ainda que não se dê conta de sua desterritorialização, possa residir numa cidade, trabalhar noutra e estudar noutra ainda. Muitas daquelas vontades de então, no que se refere a uma concreta integração regional, mesmo diante de necessidades prementes de ações articuladas para solução de problemas comuns, permaneceram apenas no campo do desejo e das boas intenções, longe ainda de uma consciência social coletiva.


Nas questões da cultura, a cor local tornou-se ainda mais cinzenta. No âmbito institucional, a cultura sequer fez parte, ao longo deste tempo, dos chamados eixos estruturantes do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, instituição que, diga-se, ficou bem aquém do cumprimento do seu primeiro planejamento estratégico regional, realizado em 2000/2001.


Estes sete últimos anos foram de uma mornidão exasperante na cultura regional. Ficamos apenas no varejo e no pobre preenchimento de agendas. Um conjunto de acontecimentos e ações (ou não-ações) contribuiu para essa espécie de sono letárgico. A morte trágica de Celso Daniel em 2002, inquestionável maior liderança local, autor das principais idéias que levaram à criação de uma institucionalidade regional, certamente foi um dos fatos que mais contribuíram com esse desalento. Postos em silêncio, pusemo-nos a dormir, como se esperássemos (herança lusa?) um tupiniquim Dom Sebastião, o Encoberto (envolto na névoa de Paranapiacaba?) que um dia há de vir e, de uma só vez, tudo resolver e iluminar.


Valho-me aqui do sociólogo português Boaventura Souza Santos, quando diz: “O desconhecimento de Portugal é, antes de mais, um autodesconhecimento. O Encoberto é a imagem da ignorância de nós mesmos refletida num espelho complacente”. Tese que bem poderia ser, guardadas as devidas proporções, aplicada ao nosso caso, dada a nossa mesma condição periférica (Portugal em relação aos grandes países da Europa, o Grande ABC em relação à Capital do Estado). Cabe lembrar que é também Boaventura Santos quem afirma no mesmo livro, Pelas Mãos de Alice, publicado no Brasil em 1999, que “ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no final do século XX”, o que pode valer para legitimar, dado o reconhecido prestígio desse intelectual, algumas das questões que coloco neste texto.


Acomodados, fomos nos acostumando com esse melancólico cotidiano de regresso à nossa histórica condição periférica em relação à Capital, condição da qual, na verdade, jamais chegamos a sair. Como bem o disse Walter Benjamin, a crise, a verdadeira crise, é continuar tudo como está.


Apesar do cenário desanimador, ainda assim acreditamos que as experiências pioneiras do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, da Agência de Desenvolvimento Econômico e da Câmara Regional, mesmo consideradas as falhas e a inoperância em seu percurso (também previstas por Celso Daniel, dada a complexidade no trato político daquilo que ele chamou de “tradição de isolacionismo municipalista”), ainda podem e devem cumprir o seu destino na cooperação intermunicipal. Afinal, são instâncias privilegiadas para solução de problemas comuns, mas que, por sua vez, também dependem de políticas públicas municipais sólidas, bem como de uma imprescindível comunidade cívica revigorada, que proponha e exerça o poder de cobrança.


Por outro lado, sabemos que não há em nenhum de nossos sete municípios uma política pública de cultura consolidada que nos aponte para o desejável. É bem verdade que, em raros momentos da vida de algumas de nossas cidades, houve e há iniciativas dignas de nota. Mas, por conta dessas ações não se tornarem permanentes, a comunidade não se apropriou delas, e, assim, não houve consolidação. Quanto à efetiva participação da sociedade, raramente foi estimulada por essas políticas (ou ausência delas), quando muito, em momentos de maior efervescência, foi instrumentalizada para uso meramente político.


Na ausência dessas políticas públicas e num completo desprezo à promoção de valores de caráter verdadeiramente artístico, cultural e histórico que representam nossa diversidade cultural, o que é oferecido como lenitivo é a desfaçatez na promoção de espetáculos e mais espetáculos, promovidos com dinheiro público, num inadmissível reforço de subprodutos da chamada indústria cultural que diuturnamente empurra goela abaixo dos cidadãos a mesmice rasa representada por “ídolos”fabricados e largamente difundidos pelos meios de comunicação de massa. Esses “ídolos” só existem em função de sua mercantilização, quando o questionamento e a reflexão sobre esses produtos é que deveriam estar na pauta das ações públicas.


Há diálogo com a comunidade?
Ela sabe de mecanismos legais participativos
como Fundo de Cultura e Leis de Incentivo?


Ações voltadas à chamada formação cultural são frequentes, através das múltiplas oficinas de criação realizadas em muitas de nossas cidades, em especial Diadema e São Bernardo, e que em Santo André também existem sob o formato de “Escolas Livres”.


Por mais meritório que seja (e o é), a questão da formação, em lugar de representar um dos componentes das políticas públicas, acabou por se transformar em preocupação central da ação cultural de caráter público. É aí que residem graves falhas que aqui vão representadas em forma de perguntas, para as quais, lamentavelmente, ainda não nos foram dadas respostas: 1) Há alguma investigação prévia da realidade cultural e carências locais para o seu planejamento e realização? 2) São articuladas a um processo de continuidade? Há busca de complementaridade entre as ações? 3) Há indicadores qualitativos que apontem resultados? 4) Paralelamente à formação artística, há preocupação com formação de público? Há um debate estabelecido? 5) Existe verdadeiro diálogo com a comunidade? É ela informada das facilidades e mecanismos legais participativos disponíveis na sua cidade, como Fundos de Cultura, Conselhos de Cultura, Leis de Incentivo?


Mais perguntas haveria, mas ficamos por aqui, pois nosso objetivo não é apresentar nenhum programa de governo para a área cultural de nenhuma de nossas cidades, mas tão-somente refletir e levantar discussões.


Pela observação e contato com produtores culturais, o que se pode concluir é que de forma geral essas ações falharam, ressaltando-se poucas e notórias exceções (lembremos dos excepcionais resultados da Cia. de Danças de Diadema, que emergiu de oficinas de criação, bem como da excelência pedagógica e de pesquisa da Escola Livre de Teatro de Santo André). Primeiro, falharam ao não fomentarem, paralelamente, um campo propício para que o que ali foi aprendido ou aprimorado pudesse efetivamente circular pela comunidade regional, de maneira que pudesse vir a formar e representar novos sentidos e desdobramentos. Segundo, porque, ao invés de ensinar a pescar e incentivar a apontar o barco para o mar largo e a navegação autônoma, contribuíram para que a arte e a cultura se institucionalizassem.


Dessa forma, assistimos ao enfraquecimento da cena teatral, com o desaparecimento de inúmeros grupos de teatro amador, verdadeira tradição local. O teatro amador chegou a compor uma federação na região, com festivais anuais. Mas os poucos equipamentos públicos transformaram-se em escolas, impossibilitando apresentações de grupos e, em consequência, desestimulando a formação de novos.


Situação semelhante ocorre em outras áreas de expressão artística, como dança, cinema e vídeo. Assim, o que temos hoje são centenas de oficineiros, formados em oficinas, que ministram oficinas para transformar esses novos oficinandos em outros oficineiros e, assim, garantir seu sustento. A cultura institucionalizada, mestres para mestres. Artistas que, em muitos casos, são obrigados a deixar de exercer sua arte para dar aulas e sobreviver. No afã de suprir as lacunas na educação formal, as administrações públicas criam “escolas” para tudo, a ponto de uma de nossas cidades atribuir-se o slogan de Cidade-Escola, sem, no entanto, nos dizer que “escola”é essa.


Cabe ressaltar, no entanto, que a arte e a cultura são autônomas, sobrevivem e florescem por si, independendo até de escolaridade, posto que são manifestações legítimas do ser humano. Em tempo: que fique claro que isto não significa defender a falta de escolaridade formal. Pelo contrário, ao receber uma imprescindível educação plena no seu sentido humanístico, o indivíduo estará preparado para a própria autonomia.


Não por acaso, vimos assistindo a iniciativas que possivelmente representem, ainda que timidamente, uma comunidade cívica que sabe reagir.


Como o novo nada mais é do que o esquecimento histórico, alguém já o disse, esse tipo de reação não nasce do nada, nem do dia para a noite. Há toda uma trajetória acumulada que, em momentos cruciais como o nosso, aciona a memória, retoma questões e acaba provocando transformações. Cabe lembrar, dentre muitos, alguns desses significativos momentos ocorridos na última década, dos quais tive a honra de participar, como subsídio para nossa reflexão:


bullet_quadrado Os nove Congressos de História do ABC realizados ao longo dos últimos 18 anos, verdadeiras epifanias de resgate, discussão, encontro e reflexão, à busca da compreensão de nossa própria identidade histórica.


bullet_quadrado O Coletivo de Cultura do ABC, que reuniu grande número de interessados na discussão cultural e que, em 2003, culminou num reflexivo seminário nas instalações do Consórcio Intermunicipal do ABC.


bullet_quadrado A Cátedra Celso Daniel da Universidade Metodista, sob coordenação do professor Luiz Roberto Alves, que promoveu em 2004/2005 o projeto “Fundamentos para a construção de indicadores de qualidade das gestões de cidades nas dimensões da ética pública, da ação cultural e do serviço ao público”. Gestores, lideranças e acadêmicos foram convidados a discutir e recolher valores de referência para construção de indicadores qualitativos que se diferenciassem das estatísticas convencionais e dos trabalhos de técnica científica em pesquisa. Tratou-se de contribuição de valor para a gestão pública das cidades, iniciativa incomum em instituições de ensino superior.


bullet_quadrado Finalmente, em diversos momentos de 2007 — como no Espaço de Diálogo Gestão de Cultura e Ação Cultural no IX Congresso de História do Grande ABC e nas mesas de discussão de cultura da Jornada ABCDMaior, realizados em São Bernardo, bem como em frequentes debates ocorridos na Livraria e Centro Cultural Alpharrabio, em Santo André — foram ouvidas insistentes manifestações de interessados em criar um processo participativo e crítico das políticas públicas da cultura e da ação cultural no Grande ABC. Essa vontade coletiva tomou forma e se transformou no Fórum Permanente de Discussões Culturais do Grande ABC que, desde o final desse mesmo ano, vem se reunindo mensalmente. O grupo discute, entre muitas questões, estratégias de atuação, como processos de integração regional da cultura, incluindo a autocapacitação na construção de uma efetiva reorganização da própria comunidade cultural.


Outras preocupações estão no estabelecimento de canais de comunicação e de cobranças, no sentido de fazer valer os seus saberes e tradições, incluindo o reconhecimento da cultura na ação educativa, como um valor inalienável da formação humana. Tratase da construção de um processo que deve juntar a atual reflexão ao acúmulo de massa crítica pré-existente, que possa dar respostas e representar simbolicamente toda a riqueza de nossa expressão de verdadeiros criadores culturais e políticos.


Na letargia em que mergulhamos, um passo
importante foi a criação do Fórum Cultural com
representação no Consórcio de Prefeitos


Em termos concretos, o Fórum Permanente de Discussões Culturais do Grande ABC, grupo independente que não é juridicamente constituído, deu passo importante ao abrir diálogo com o Consórcio de Prefeitos propondo no Seminário Planejamento Estratégico Regional de 2008 a constituição de um Grupo de Trabalho de Cultura junto ao Consórcio. O GT foi formalizado em 14 de maio último numa reunião de caráter histórico, com representantes de seis secretarias de Cultura que não se conheciam pessoalmente e jamais haviam se reunido para discutir problemas comuns. Passam, assim, a dialogar entre si e a comunidade regional graças a uma iniciativa da sociedade civil, com respaldo institucional do Consórcio. Também pela primeira vez um Grupo de Trabalho do Consórcio de Prefeitos é coordenado por alguém da sociedade civil. Projeto para realização de um censo cultural do Grande ABC foi proposto nesse primeiro encontro pelos representantes do Fórum de Cultura. O GT de Cultura está representado por elementos do Fórum Permanente de Discussões Culturais e secretários de Cultura das sete cidades.


Reações como estas representam significativos sinais no despertar desse dormitar letárgico em que mergulhamos, mas no qual muitos teimam em se manter à tona. Não podemos esquecer que a Internet demonstra cada vez mais importância na livre circulação de idéias e produtos fora da lógica do mercado tradicional. A pauta hegemônica dos chamados Cadernos Culturais da grande imprensa vem sendo substituída por blogs, newsletters e revistas que têm caráter formador de opinião nesse irreversível meio de comunicação em todos os campos do conhecimento, realidade na qual o Grande ABC está perfeitamente inserido.


A revolução possível terá de vir pela construção coletiva (nem sempre o caminho mais fácil…). Mas, sem investir maciçamente em educação e cultura, essa revolução jamais acontecerá, ainda que reações esporádicas e isoladas se manifestem. Para tanto, necessário se faz o resgate e o cultivo da utopia, que representará o motor necessário à transformação de uma realidade que não é só nossa, regional, mas de toda uma civilização que se revela em crise planetária de valores.


Leia mais matérias desta seção: Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Total de 35 matérias | Página 1

16/09/2008 Primeiro escalão dita ética e responsabilidade social
16/09/2008 Wikimundo, um novo modelo de gestão regional
16/09/2008 Cidades são protagonistas da solidez regional
16/09/2008 Plantamos regionalidade, mas não sabemos colher
16/09/2008 Da comunicação que temos para a que queremos
16/09/2008 Praticar uma sólida agenda cultural ainda é utopia
16/09/2008 Não mais que uma província metida a besta
16/09/2008 Que as futuras gerações perdoem nosso voo cego
16/09/2008 Bandido não vê fronteiras, mas nossas cidades sim
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